domingo, 6 de fevereiro de 2011

CANTOS DOS SABERES: A MÚSICA DOS KANELA-RAMKOKAMEKRA NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES SEXUAIS

Os Kanela-Ramkokamekra constituem um grupo ameríndio pertencente ao grupo linguístico Timbira, precisamente aos Timbira orientais. Estes povos estão há mais de cento e cinquenta anos em contato com a sociedade nacional e além da língua, da mitologia, da organização social e espacial possuem em comum características físicas como o corte de cabelo determinado por sulcos laterais acima das orelhas, extração de cílios e sobrancelhas e ainda algumas deformações corporais como as originadas pelas corridas de tora (calos em um dos ombros), e grandes orifícios nos lóbulos das orelhas causados pelos adornos corporais. Estas últimas características, calos nos ombros e deformações nas orelhas,  são exclusivamente masculinas.
Os Timbira já foram objeto de muito estudo, começando pelos trabalhos de Nimuendaju (1946, 1983) e passando pelos trabalhos de Gilberto Azanha (1984), Maria Elisa Ladeira (1982, 1983), Carneiro da Cunha (1973, 1978, 1986), Melatti (1972, 1973, 1974, 1978, 1979), Roberto Da Matta (1976) e William Crocker (1958,1974,1978,1984,1990), sendo este último quem mais escreveu sobre os Kanela-Ramkokamekra. No entanto, no meio desta extensa e importante produção bibliográfica, nenhum estudo dedicou-se profundamente à música nem à performance dos cantadores, nem à semântica das letras. Dentro desta linha, apenas os rituais foram objetos de estudos aprofundados, relegando a música e a performance que a acompanha a um simples detalhe. Não pretendo com este artigo aprofundar em poucas páginas a questão da música e da performance dos cantadores. No entanto pretendo contribuir com informações sobre os diferentes cantos e performances que distinguem homens e mulheres, recolhidas por mim durante minha pesquisa de campo, e também com informações de como estes atores se distribuem no espaço da aldeia durante os rituais do povo Timbira, enfocando principalmente os Ramkokamekra.
Este grupo foi o mais estudado por Nimuendaju entre todos os povos Timbira, sendo depois de seus trabalhos que este grupo, morador das savanas, atrai a atenção de antropólogos pela complexidade de sua organização social e de seu sistema ritual. Os três grupos Timbira Krikati, os Krahô e Ramkokamekra foram considerados por Nimuendaju como sociedades “irmãs”. Em seu livro "The Eastern Timbira" estas três sociedades foram analisadas juntas (NIMUENDAJU, 1946)
Quanto aos Ramkokamekra, estes habitam precisamente a região central do estado do Maranhão, à 75 km do município de Barra do Corda, cerca de 500 km de São Luis e 650 km de Belém. Ocupam um território cuja superfície é de 125 212, 16 km2, já demarcado e homologado desde 1970. Intercalado de savana e zonas de floresta amazônica, o território Ramkokamekra é inteiramente percorrido por brejos cujas margens são revestidas por uma mata ciliar abundante, entre elas a palmeira [Mauritia sp.]][2], o buriti [Mauritia flexuosa sp.], o bacuri [Platonia sp.], a bacaba, o babaçu [Orbignia speciosa sp.], e outros. No entanto, nas proximidades da aldeia a vegetação mais encontrada é o cerrado caracterizado pela freqüência  de árvores de pequeno porte. O caule destas pequenas árvores [Sapium sp.] é perfeito para a produção do pó de carvão que serve para a pintura corporal chamada de «pau de leite» (PANET, 2003, p. 26)
Sobre os objetos que fabricam, existem os de uso doméstico, quotidiano ou pessoal como as cestas e bolsas de palha, os braceletes e colares e outras categorias de objetos, sendo alguns de fabricação exclusivamente masculina como os arcos e as flechas, as bolsas de caça e pesca e os fabricados por mulheres como os grandes cestos bicolores, os colares e braceletes de uso pessoal e ornamental. Fabricam  ainda objetos destinados às cerimônias como as máscaras “cookrulérô”e colares de miçangas com pontas de unhas de veado usadas nas mais importantes corridas de tora.
Além de outros objetos como brinquedos, bolas de borracha, esteiras de assento, os Ramkokamekra fabricam os próprios instrumentos musicais como os maracás, (PANET, 2003, p.32) classificados como idiofones, ou seja, instrumentos cuja substância em si, devido a sua elasticidade e solidez ressoa sem requerer membranas ou cordas e os aerofones, instrumentos onde o ar é em si o vibrador em sentido primário como as flautas, ocarinas ou cabacinhas e pequenos berrantes feitos com chifres de boi”(RIBEIRO, 1998, p.141). Os Ramkokamekra não fabricam nem utilizam outro tipo de instrumento musical, apenas os citados acima e o mais usado, o mais importante e indispensável que é a voz humana. Vale salientar que dos instrumentos citados acima, nenhum é de uso feminino. As mulheres possuem unicamente a voz para cantar, o que demonstra que alguns saberes encontram-se sob a dominação masculina.  Berta Ribeiro nutre esta pespectiva quando afirma que:
A música e os instrumentos musicais se relacionam a aspectos da organização social e da cosmologia. ”(RIBEIRO, 1998, p.141)
Com efeito, mostro neste trabalho que o aprendizado da cultura pelos indivíduos da sociedade Ramkokamekra é hierarquizado, servindo também como instrumento de análise da estrutura social.
Articulada com a organização social encontra-se também a configuração espacial sendo esta mais uma construção social produtora de hierarquia. Assim, na aldeia dos Ramkokamekra observei que o espaço estrutura as relações entre os indivíduos e entre os sexos pois ele veicula significados que dependem do contexto social. Desta forma a divisão sexual e a hierarquia social oferecem um modelo de aplicação para compreender a organização dos espaços. Os espaços não existem do nada, eles se constróem sendo considerados como objetos que tomam forma, como, nos termos de Claude Calame, «  uma figura marcada de diferentes qualidades por intermédio dos sujeitos que o apreendem percorrendo-o....»(CALAME, 1983, p. 2, minha tradução).
A aldeia Ramkokamekra tem uma configuração peculiar. Dois círculos concêntricos ligados por ruas intercaladas por áreas verdes tal como o desenho de uma roda de bicicleta. Uma hierarquia existe entre o pátio central e as.  No entanto a casa é o reflexo da praça central e o pátio é um prolongamento da casa.  Os Ramkokamekra, como os demais timbira possuem residência matrilocal o que significa dizer que as casas pertencem às mulheres, é onde nascem, onde dão a luz à seus filhos e na ocasião enterram suas placentas. Já o pátio central é o espaço masculino por excelência, onde as decisões políticas são tomadas, a data dos rituais é escolhida e onde são discutidos todos os problemas que envolvem a sociedade Ramkokamekra. A hierarquia social e a separação sexual se manifestam na apreensão deste espaço assim, nas casas é a mulher quem reina, mas no centro da aldeia sua subordinação é incontestável. Esta hierarquia sexual é um exemplo de desigualdade de acesso à cultura. Certos saberes e decisões não chegam às  mulheres, e de acordo com a configuração espacial da aldeia Kanela, o espaço público, político, jurídico, cerimonial e masculino se opõe ao espaço privado, doméstico e feminino.
Quanto aos lugares mais significativos da aldeia, é incontestável que o pátio central e as casas estão em destaque. No entanto, os caminhos que os conduzem de um para o outro ligando o pátio às casas, assim que as ruas circulares também são importantes, sendo lugares principalmente de passagem e de encontro. Nestes espaços de importância secundária para a vida cultural pode ainda acontecer algumas manifestações culturais e musicais. Estes lugares, e a maneira com a qual os indivíduos se movimentam, orientam e estruturam as relações sociais. No entanto a rua que  circula a aldeia e que passa na frente das casas são espaços sexualmente neutros pela grande movimentação de pessoas que o utilizam.
Como salienta Maria Elisa Ladeira, os Timbira são conhecidos como “sociedades de festa”e  os espaços citados acima são os mais solicitados durante as festas e rituais, festas cerimoniais que marcam o tempo, regulam a vida social e garantem a harmonia com o universo (LADEIRA,1984). Durante estas ocasiões de festa, “amjêkn”, que também significa alegrar-se, a música invade a aldeia confirmando o que diz Berta Ribeiro, “O rito é invariavelmente, um evento musical”(RIBEIRO, 1998, p.141). Sendo que nos rituais escuta-se sobretudo os cantos masculinos. Nestas sociedades tudo é motivo para festejar: nascimentos, mortes, mudanças das estações do ano, a primeira safra do milho, os rituais de iniciação masculina e outros. E todas estas festas, como salienta Gilberto Azanha, têm seus cantos específicos. Estas informações atestam que a figura do cantador é fundamental na vida social Timbira. Este povo admira e prestigia os seus “cantadores” (ëncrercatë: aquele que “domina” = catë os “cantos” = ëncrer). (AZANHA, encarte do CD Amjëkin, CTI, 2004)
Não existe na sociedade Ramkokamekra rituais de iniciação feminina. Apenas os meninos passam por esta etapa do crescimento. Existem dois tipos de iniciação masculina onde os meninos ficam isolados em casa, e outro tipo onde o isolamento é conjunto, do grupo de iniciados. Trata-se do Ketwajé e do Pepyé respectivamente. Nestes rituais o menino aprende a cantar e a desenvolver a voz. Vale salientar que na sociedade Ramkokamekra ter voz forte é sinônimo de força e poder. O falar forte é qualidade indispensável a um bom chefe, no entanto, cultivam também a voz suave quando é preciso conquistar as mulheres.
O ritual é preparado, ensaiado e o protocolo dura o dia inteiro. Do amanhecer até o anoitecer. Bem cêdo da manhã um cantador chama os corredores de tora que correrão com uma tora trazida no dia anterior. A corrida acontece em torno da aldeia. Correm cerca de 5 voltas. Termina-se cêdo, às 8 horas, mais ou menos. Às 9 horas os meninos que serão iniciados são chamados em casa pelo cabeça do grupo e pelo mamxêdê,  chefe do grupo, já iniciado. São levados há mais ou menos 3 km fora da aldeia. Sentam-se sob os jôelhos e aí são solicitados à cantar um a um a música “aàà jôcôoooooooo” para treinarem a voz e para que seja decidido quem cantará no pátio na hora solicitada. Aquele que errar, rir ou perder a voz, terá pimenta passada na bôca como castigo. A prova é realmente levada à sério e os meninos ficam realmente nervosos. É uma prova de formação da pessoa, do homem.
A festa continua depois do almoço. O cabeça e o mamksêdê passam em todas as casas recolhendo os meninos para guarnicer na prisão. A prisão consiste em uma casinha na aldeia. A casa tem duas peças. O quarto onde os meninos ficam, tem uma janela minúscula, deixando-os praticamente no escuro. Mais uma corrida acontece, desta vez a tora é trazida de fora da aldeia, há alguns kilômetros.
As lideranças já reunidas no pátio assistem a chegada dos corredores. O público formado basicamente por mulheres e crianças correm para o pátio. Os meninos também, já estão preparados: ornamentação na cabeça, pintura de urucú no corpo, juntos dirigem-se em fila indiana ao centro do pátio. Fica um grupo de frente para outro. Depois as mulheres (mães ou irmãs dos meninos) aproximam-se com as mãos sobre as costas dos meninos, como gesto sutil de apoio. Cantam mais uma música. O grupo dos meninos chama-se MenKacama que significa grupo sortido, misturado.
Durante o ritual Pepyé, que acontece na praça central, ao sinal discretíssimo dos chefes de cerimônia que ficam cada um em uma extremidade das filas onde os meninos estão organizados, os meninos, junto com dois cantadores experientes, cada um na extremidade da fila, cantam a música “a jôcôooo”. É a prova da voz treinada na manhã do mesmo dia. O cantador começa, e em seguida o garoto ao seu lado, depois um do meio e mais um da ponta. O cantador recomeça e assim em diante.
Em conversa com um Ramkokamekra obtive a seguinte explicação sobre a música “aaaaaajôcôooooo” e sobre a iniciação masculina:
“Essa canção fala sobre a alma e os pássaros. É uma canção para o corpo ter mais força, velocidade porque muitos deles vão receber cai (curandeiro), muitos deles vão receber corredor, cantador, caçador. É uma tradição do passado. É importante. Quando eu fui crescendo eu não sabia, mas quando eu fui aprendendo mais e mais eu sabia que...é tipo a faculdade, você vai passando e aprendendo mais. Aquele sinal que eles estão fazendo ali diz que eles estão alimentando.
Olha, é uma prova que eles vão se sentar no chão e o músculos das coxas vai ficar bem forte.
A cultura  salva o espírito dos jovens pra que nenhum mal chegue perto deles. Então essa canção foi inventada pela alma.
A jôcoooooooooo, aaaaaaaa jôcôooooooo “ Tu vai sofrer, mas tu vai ficar forte” . O corpo vai ficar forte”.  (Raimundinho Pyat)
Os rituais de iniciação, Pepyjê-Ketwajê são importantes na constituição da pessoa Ramkokamekra. Neles, aprende-se a ser forte, corajoso e a enfrentar  todo tipo de situação. Falar em público é uma delas, cantar também. A voz é importante para a autoconfiança e para a formação da identidade pessoal. Ramkokamekra não tem medo ou vergonha de falar, de falar alto, forte quando é preciso, nem de cantar para o mundo escutar. É nos primeiros anos da iniciação que as qualidades de “cantador”de um menino são reveladas. E logo cêdo ele é solicitado à aprender as letras que deverá armazenar em sua memória.
Durante a cerimônia, os meninos se recolhem mais uma vez na casa escolhida para abrigá-los. Paralelamente, em torno da aldeia, acontece uma corrida com flecha de reversamento. No mesmo dia, bem cêdo da manhã, um cantador acorda a aldeia com um canto que chama para guarnicer para a  corrida de tora que começa há 15 ou 20 kilômetros da aldeia.
A corrida de tora é uma prática esportiva muito comum entre os grupos de língua e cultura Jê. Consiste em uma competição de força e velocidade entre dois grupos. As toras que podem pesar até 150 kg são preparadas, pintadas de urucú. Os corredores,  expectadores e a antropóloga curiosa vão chegando. São 6 horas da manhã. As toras vão ser escolhidas pelos dois grupos, o Kamakra e o Atycmakra. O grupo que corta a tora renuncia o direito de escolher primeiro. O kamakra vai cantando e levantando as toras para escolhê-las. Depois de escolhidas, as toras são “rezadas”por dois cantadores.
Os Kanela cantam no espaço privado e doméstico bem como no espaço público, sendo o primeiro característico dos cantos infantis e femininos e o segundo dos cantos masculinos. Quando um homem não consegue dormir ele sai de casa e vai cantar dando voltas pela aldeia. Seu canto é escutado por todos enquanto circula pela rua periférica. O mesmo não acontece com as mulheres. Estas jamais cantam sozinhas no espaço público.
O lugar e a ocasião diferencia o canto masculino do feminino. As mulheres cantam frequentemente em coro, cantos psalmódicos, monótonos e uníssonos. Além do que existem cantos exclusivamente femininos e outros unicamente masculinos. O canto da Lua, abaixo, é cantado pelas mulheres:
“Pyty wryjree! Pyty wryjree é ato pyra cà ree – a kini nôré é
Pyty wryjree! Pyty wryjree é
Ato pyra cà ree – a kini nôré, é”
“Lua Lua, tá parecendo um ôlho, eu nao tô gostando.
Lua, Lua eu não tô gostando do ôlho da Lua”
As letras das músicas Timbira falam de astros celestres e sobretudo de pequenos animais como abelhas, a arara e outros pássaros, de peixes, macacos  eporcos. Segundo Azanha, elas “descrevem o mundo e todas as coisas belas e inusitadas dos seres que povoam esta terra e que são dignas de serem eternizadas, na única maneira humana em que o seriam: na música”. (AZANHA, encarte do CD Amjëkin, CTI, 2004)
Ainda segundo Azanha,
as palavras cantadas não são palavras comuns, porque o que descrevem são os detalhes mais diferenciais dos seres, aquelas diferenças mais notáveis ou os comportamentos mais inusitados de todos os seres e que somente uma observação sofisticada e sistemática pode reter – para elogiar, ressaltar e eternizar na música.
Tudo que existe no universo “natural” Timbira tem seu canto: das pequenas bolhinhas d’água formadas pela rãnzinha amarela quando respira, à luz diáfana que emerge dos aerólitos; das cores inusitadas de determinadas joaninhas à forma delicada do menor dos arbustos e florzinhas do cerrado; da elegância do caminhar da onça à graça do redemoinho no cocoruto de um pequeno marsupial, tudo o que é diferencial e inusitado dos e nos seres é cantado. (AZANHA, encarte do CD Amjëkin, CTI, 2004)
Nas reuniões de canto e dança quotidianas homens e mulheres dividem o espaço do pátio central. Um cantador com o maracá na mão orienta o rítmo. As mulheres cantam em côro e os rapazes dançam. Há dois tipos de performance, uma dança masculina com música mais animada e outra feminina onde as mulheres fazem movimentos discretos com o corpo e cantam ao mesmo tempo: O Ikrèregarrogre e o Ikrerecati. O Ikrèregarrogre é quando os rapazes dançam batendo os pés diante do coral feminino e seguindo o cantador. Diz-se neste caso que este modo de dançar é desrespeitoso com o coral feminino chamado honcrepoj, a mesma palavra para música. Ikrerecati é quando o coral de mulheres canta acompanhando o cantador e seu maracá com discretos movimentos corporais.
Quotidianamente os jovens se reunem no pátio da aldeia para cantar e paquerar. Quando estas intensões se cruzam cantam a música do rato ‘amu xôre’. Esta música evoca as qualidades sensuais do corpo, enfatizando o movimento das nádegas. Geralmente, depois de cantá-la e dança-la abraçados em círculo, casais se formam e começam a se relacionar.
Âmu xôre juwawê! Amu xôre juwawê!
Amuh xôree! Hã h, hã h, hã h!
Romo quêne türe! Jah pêpêre!
Ja ja pêpêre,! Ja pêpêre!
Romo quêne türe jah pêpêre
Ja ja pêpêre,! Ja pêpêre!
Com estes exemplos percebe-se que a arte representada aqui pela música, expõe uma função universal, essencial ao gênero humano, esta opinião é compartilhada por diversos antropólogos que estudam sociedades indígenas, sendo o estudo da arte em geral, a busca do significado e a significância desta para os membros da sociedade estudada (VELTHEM, 1998, p.83)
Os métodos de uma arte e os sentimentos que a anima são inseparáveis dos contextos sociais que devem ser compreendidos como mecanismos cognitivos que refletem a visão e o sentido conferido pelos membros de uma determinada sociedade (GEERTZ,1986, citado por VELTHEM, 1998, p.83).
Para os Ramkokamekra como para outros povos, a morte representa uma passagem, uma viagem para outro mundo. Assim, considerando que o morto faz uma viagem para outro mundo, é preciso lhe dizer formalmente adeus. Por analogia a este adeus formalizado, a sociedade pratica um ritual, o ritual funerário. Em geral, os vivos não deixam os mortos partirem sem antes terem chorado muito. Estas lamentações podem durar até três horas conforme a importância do defunto. Durante o ritual funerário, os membros da família do morto lhe falam lembrando-o que eles não estão prontos a partirem com ele e que é preciso esquecê-los. Estas lamentações são ritmadas e parecem músicas que saem do espírito e atravessam a garganta. “Um dia a gente vai se ver, mas agora não, pois eu ainda não estou pronto »(palavras de um índio na ocasião do ritual funerário de seu irmão.  
A música também tem outras funções como a de comunicação com os espíritos. Alguns xamãs cantam para exprimir a relação ao “outro-mundo”, ou seja, ao mundo dos espíritos enquanto estão curando. Estes cantos, segundo Perrin, o ajudam a comunicar-se com o mundo do além (PERRIN,1995, p.52)
O canto na sociedade Ramkokamekra distingue os gêneros delimitando-os no espaço da aldeia. Os cantos contribuem também para a construção das identidades sexuais, pois as músicas são cantadas ou por homens ou por mulheres dependendo da semântica que elas veiculam.  Ouvindo os cantos, as crianças aprendem detalhes de estórias míticas e das características inusitadas dos seres que com elas co-habitam o mundo. É um saber que sai da garganta e que é transmitido às crianças desde cêdo, enquanto processo educativo, de maneira diferente dependendo do sexo do indivíduo.


REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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[1] O presente trabalho foi realizado com o apoio do Governo do Estado do Maranhão através da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA - BRASIL
[2]Les noms scientifiques des plantes ont été recueillis dans le livre de Nimuendaju 'The Eastern Timbira'.

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